terça-feira, 22 de outubro de 2013

À beira do pior

 Se eu pudesse ser a pessoa mais feliz do mundo. Eu teria que ser cantor. Mas não simplismente um bom cantor. E sim um cantor interprete. Sem dúvida os que assumem este oficio, são as pessoas mais realizadas do mundo. Por que eles vivem de dizer o que sentem. Se ficam tristes, essa tristeza vira uma obra de arte, se estão no fundo do poço fazem coisas com tamanha exatidão, que da gosto ter vindo ao mundo.  Eu tenho meus interpretes de preferência, João Gilberto é um dos que eu mais gosto. Mas nenhum interprete, nenhum. Nenhum que eu conheço expressou a tristeza e o desespero que estou sentindo. Não encontro em nada à minha volta, uma segurança de que as coisas ficaram bem. Eu estou sem lágrimas e sem para onde ir.
 A amizade, que eu sempre estimei é a fonte da minha maior tristeza hoje. Eu não me lembro de ter feito alguém triste como estou agora. Ou talvez eu tenha. Talvez seja isto o que minha mãe sentiu, quando eu abandonei suas crenças. Talvez tenha sido isso. Mas eu não tinha escolha. Em verdade eu tinha escolha, mas naquele momento eu fiz a melhore escolha pra mim. A melhor escolha pra mim, foi feita. Mas e pra ela? Foi a melhor escolha? Eu não posso responder; responder seria desastroso. Mas nesta madrugada, recheada de café e de um piano amargurado vem chegando o sol. Minha querida alma, como será que esta?
 Três dias depois, ainda de manhã quando eu entrei no carro recebi um telefonema. Era Sara. Mas eu não podia atende-la. Estava bagunçado por dentro, tinha um medo incontrolável. Tinha o maior pesadelo morando dentro de mim, o pesadelo de não acordar daquele pesadelo. Tinha o medo de saber que Alma seria irredutível no seu posicionamento. Tinha medo que aquela Alma se perpetuasse. Durante o todo o percurso, o meu peito se contorcia de dores, um incomodo. Eu estava impaciente com a vida. Por que a vida em determinadas horas, se torna dispensável. Certas vezes a dor é tão grande que a morte seria um orgasmo.
 Só, dois meses depois, tive coragem de abrir um e-mail que Sara me enviou. O e-mail dizia:
Meu querido, meu amigo, meu pai;

Estou precisando muito mais de você do que de qualquer coisa; as coisas comigo e minha mãe estão a cada segundo pior. Minha relação com ela esta completamente comprometida, não há sequer um bom dia que seja bem compreendido por ela. Não há alegria por aqui, não há esperança, só há algumas recordações que eu posso guardar comigo. Eu não sei exatamente o que foi que aconteceu com vocês no dia que você esteve aqui, só sei que estou perdida. Estou confusa e completamente desesperada. Por favor, me ajude! Eu te imploro ajuda! Eu preciso de um norte, de uma vida. Eu preciso acreditar que isso tudo uma hora irá desaparecer de nossas vidas. E voltaremos a ser grandes nessa vida.  Não canso de sonhar, um dia voltar a passear e a viver com vocês. Sonho que sentaremos um dia nesse sofá de novo para ouvir uma música bonita. Por favor, perdoe minha mãe, ela precisa de você. Eu preciso de você, preciso dela. Preciso de "nós" de novo.

Sarinha, 

Li e re-li. Li por mais três vezes, li outro dia, e por fim cheguei a perceber que Alma continuava com o mesma atitude. Mas o que havia de ter acontecido? Essa era a única pergunta que eu me fazia. Eu só precisava dessa resposta. O que foi que levou Alma a se tornar assim? O que foi que levou ela a se tornar essa pessoa. Liguei para Sara, quando ela atendeu parece que estava com outras pessoas, e ainda deu para escutar ela pedindo licença. Me perguntou como eu estava e eu respondi, que há muito tempo não me encontrava tão mal. Ela me pediu desculpas e com a voz embargada ela me confessou que tinha consciência de que tudo aquilo foi ela que desencadeou. Interrompi sua afirmação, negando. Eu afirmei para ela que não há culpados naquilo tudo, só há um conjunto de incompreensões. E que com certeza tudo iria ficar bem. Ela pediu que eu não me desligasse mais dela, ela me disse que precisava de mim, que sentia minha falta. E nisto meu coração se atormentou.
  Sara, me disse que a única coisa que lhe fazia feliz era estar com Suzana, fazia ela sentir-se mais leve, mais calma, ela me disse que  Suzana faz ela sentir-se como se fosse ouro, uma jóia preciosa, um milhão de dólares. E encerrou dizendo que o mundo é melhor com ela, mas seria muito melhor se fosse com ela, comigo e com Alma. Eu adoraria, tudo o que eu mais queria da vida é que Alma pudesse aproveitar melhor aquele momento mágico na vida de sua garotinhas; será que ela iria viver aproveitar isso um dia? Adianto a resposta: não.
 Eu tenho várias pessoas legais fazendo parte da minha rotina, tenho amigos que me acompanham em shows, cinemas, festivais e tudo mais. Tenho amigos de mesa de boteco, amigos de teatro, amigos de praia, de acampar e tudo o mais. Mas esses amigos, são do tipo que uma hora ou outra vão morar em outra cidade, ou começam a namorar e de repente sumiu do meu convívio. O que era diferente da minha ligação com Alma, era uma coisa de uma alma para a outra. Mas um determinado dia eu decidi marcar com meus amigos para ir à um boteco, foi onde conheci um garoto lindo. Moreno, sorriso solto, cheio de boas esperanças, cheio de alegria pela vida. A vida inteira num sorriso. E ela sabia de tudo, conhecia tudo. Abraçava muito. Um olhar muito mimoso. O nome dele: Sinthy. Foi Nince, uma colega da faculdade que convidou ele. E daquele dia em diante nos tornamos grandes amigos, e por algumas vezes dormimos juntos. E uma promessa de amor, começou a surgir no meu coração.
 Liguei para Sara, e conversamos sobre nossos relacionamentos. Ela muito jovem, muito linda, estava completamente inspirada naquele romance lindo. Eu já nos meus trinta e seis anos; sentia-me como um adolescente. Era uma luz, naquele momento tão tenso. Por alguns instantes, enquanto eu conversava com Sara, eu sentia a mesma sintonia que eu tinha com Alma. Sendo que a única coisa que eu soube de Alma naquela ligação, foi que ela chegava do trabalho e ia direto para o quarto e que nos finais de semana. Ficava todo o tempo no computador. Lamentamos e fizemos votos de que essa situação mudasse. Terminando esta ligação, liguei para Sinthy, e combinamos de ir ao teatro no fim de semana. Comecei a guardar muitas expectativas., comprei roupas novas, comprei um cd de Paul Simon para presenteá-lo. Arrumei minha casa. Perfumei os corredores, coloquei La vie en rose para tocar, dançava enquanto a música tocava. Subi no sofá para alcançar o teto. Pulei do sofá e fiz outras bobagens que eu não fazia há muito tempo. Alma ainda era uma dor, mas naquele momento havia Alma em minha alma. E por um momento pensei comigo mesmo: Que mundo maravilhoso!
 Chegando perto da hora da peça, comecei a passar minha calça, meu sapatos, já na expectativa de Sinthy bater à minha porta dentro das próximas horas.  Engomei as mangas da camisa, tomei banho ouvindo Madonna, lavei os cabelos, fiz a barba. Saí do banheiro, vesti minha calça, coloquei meias branquinhas, amarrei os cadaços, abotoei cada botão da camisa enquanto cantava Like a prayer. Por fim coloquei o cinto e Louis Armstrong para tocar, olhava na janela de minuto a minuto, e o coloquei um café pra coar. Me olhava no espelho e olhava da janela. Espelho. Janela. Espelho. Janela. Espelho. Janela. Decidi ligar para ele, pois já havia passado alguns minutos do horário combinado. Mas não fui atendido. Fiquei com uma interrogação no ar; mas pensei: ele deve estar dirigindo. E enquanto isso peguei o encarte do novo cd de Gal Costa. Peguei uma revista sobre Jazz e comecei a ler. Terminei de ler um artigo inteiro. Liguei novamente. Sem sucesso.
 Começou a se aproximar de mim, uma nova tristeza. Uma pequena decepção. Depois outras decepções. Juntaram-se várias tristezas e os botões da camisa começaram a se desabotoarem. Cinto foi afrouxado. Os cadarços desamarrados. Coloquei café numa xícara, olhei ao redor e eu estava: sozinho. Sozinho. Algumas interrogações acompanhavam os goles de café. E se eu não fosse gay? Como estaria minha vida àquela altura se eu não fosse gay? Estaria com algumas crianças correndo pela sala? Estaria num casamento feliz? Meus pais iriam almoçar a comida da minha esposa, e iriam meus filhos serem afagados pela minha mãe. Iriamos todos para igreja. Por que nasci gay? O que a vida queria me dizer com isso? Por que tanta tristeza? Alma? O que houve com Alma? Como ela estaria naquela hora? Estaria pensando em mim, no nosso passado, na nossa história? Teria consciência ela de que nunca, nem por um segundo desejei o mal à ela? Eu precisava muito de Alma, e nos momento  à frente eu iria precisar muito mais.
Lembro pouco, mas me lembro que toda vez que eu dava muita risada, minha mãe dizia que criança quando esta rindo demais vai dormir chorando. E pelo que percebo, isto não se aplica apenas à infância, a vida inteira é assim que acontece. Passaram-se duas horas que eu estava deitado no tapete da sala, me contorcendo com todas aquelas tristezas. Até que eu recebi uma ligação, era Nince. Ao que atendi:
- Olá, Nince! Tudo bem? - Escutei uma voz completamente embargada, rouca e totalmente diferente do vozeirão que Nince tinha. Levantei do tapete e perguntei.
- O que foi que aconteceu Nince? Esta tudo bem? - Perguntei franzindo a testa e já preocupado.
- Você não soube o que aconteceu? - Respondi que não, foi quando ela me deu a noticia de que Sinthy havia sido assassinado. Eu me desarmei completamente, saí caminhando desnorteado pelos corredores e descendo as escadas do meu prédio e sentei na calçada. Esta é uma das cenas mais vivas na minha memória. Eu sentado numa calçada fria às 23:00 beirando a madrugada, até que o carro de Nince parou na porta do meu condomínio e ela desceu do carro e sentou-se na calçada junto comigo. Choramos muito. Nince era uma boa pessoa, uma excelente professora, era casada com um jornalista muito bem sucedido. E Sinthy foi seu aluno, depois que ele se formou eles se tornaram grandes amigos. E ali estávamos chorando por um rapaz tão parrudo em sua delicadeza, tão quieto em sua elegância, ele ficou vivo em tudo o que nós gostamos.
 No dia seguinte fomos para o velório, protestos contra a homofobia foram articulados nacionalmente. A mãe de Sinthy veio abraçar Nince, e Nince me apresentou à sua mãe, em meio às lágrimas ela me disse:
- Ele estava perdidamente apaixonado por você.

Fiquei mais abalado ainda, poderíamos ter um grande futuro pela frente, poderia ter sido ele o grande amor da minha vida. Poderíamos ter criado um filho. Poderíamos ter ido ao show de Paul Simon na europa. Poderia apresenta-lo à Alma e Sara um dia. Ele poderia ser meu novo grande amigo. Mas ele estava num caixão, estava frio, estava com feridas pelo rosto, teve seus genitais cruelmente amputados. E o seu futuro ficou apenas com uma grande possibilidade.  Mas um grito de socorro ecoou por todo o Brasil. Um grito de aflição, um grito mais alto que o conforto dos que estavam acomodados. Ainda no velório, me afastei até um café próximo chamado "Café com bolacha" eles tocavam bolachões, quer dizer Lp's. E o bolachão que tocava era o The Stonewall Celebration Concert de Renato Russo; e eu me lembrei da primeira vez que eu ouvi esse álbum, eu havia ido visitar Alma e ela me deu esse álbum em formato de CD, fizemos café e nos sentamos para escuta-lo. Foi logo após a morte de Renato Russo e ao terminar o CD, conversamos sobre o quanto é importante dizer: eu te amo. O modo como a vida é curta.
- A vida é tão curta, tão curta; que não da tempo de ter raiva de quem a gente ama; não da tempo de ter ciúmes; não da tempo de brigar. De ficar sem se falar. Não temos tempo pra isso. - Disse Alma.
Lembrar disto foi o suficiente para que eu sair imediatamente da cidade num avião sem levar sequer outro casaco.

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