terça-feira, 22 de outubro de 2013

À beira da solidão

Quando você for conversar algum amigo, não prepare uma discurso! Mas prepare duas ou três perguntas sobre ele. Prepare-se para saber como ele anda e não para falar como você esta. Amigos se fazem pelo interesse mútuo e não pelo interesse próprio, (isto é velho). Se você for interessado em saber como esta o seu amigo, ele irá retribuir confortavelmente. Ainda que você esteja extremamente feliz ou triste, se importe só com ele. Aprendi isso com Alma. Foi assim que ela sempre agiu comigo, no dia que os pais dela morreram num terrível acidente automobilístico, quando finalmente tive coragem de entrar no velório ela me abraçou desnutrida de esperanças e me perguntou se eu já havia encontrado o disco de Cazuza. Eu não sabia o que falar naquele momento tão inesperado, triste, frio e aterrorizante.
 Quanto à irreparável perda que Alma sofreu no fim da adolescência com o decorrer dos anos ela foi aprendendo a respirar melhor essa situação. Porém, antes houve o período em que ela trancou-se em um mundo de puras lágrimas e muitas lágrimas. Gentilmente agradecia as minhas visitas mas era nítido o seu desejo de ficar sozinha. Era saudável pra ela ficar no seu silencio, em comunicação consigo.  Ela fez uma imensa falta, principalmente por que foi no mesmo momento em que eu me apaixonei pela primeira vez e tive minha primeira decepção amorosa. Depois que retomamos os nossos diálogos, nossos encontros, Alma já era uma mulher, era outra pessoa, era séria. Mais séria, mais adulta, mais calada, porém ainda era a Alma de sempre.
 Foram poucos meses até ela conhecer o pai da Sarinha e engravidar. Depois o seu namorado partiu para a Europa, sem sequer deixar um telefone para contato. Mas Alma foi uma excelente mãe, foi zelosa e alegre na criação de Sarinha, eu que acompanhei elas durante tantos anos sempre percebi com clareza a relação limpa, pura e doce entre as duas morenas que cintilam minha vida de carinho.
 Assim que aterrissei, liguei o celular e era uma mensagem de Sarinha, expressando sua felicidade por conta da minha chegada. Menos de trinta minutos eu cruzei a cidade sob o elegante por do sol e cheguei ao apartamento. Sara estava cozinhando um bolo de chocolate e escutando Nina Simone. Enquanto Alma tinha ido ao supermercado. O bolo já estava quase pronto e ela me ajudou a levar as coisas para o quarto onde eu iria ficar. Depois nos sentamos e começamos a conversar sobre a música que tocava, ela já tinha toda coleção de Nina e fiquei impressionado com o fato de que, Alma havia sido fã de Nina quando éramos jovens, pra ser mais especifico nas beiradas de engravidar de Sara. Finalmente entramos no assunto crucial. Ela me perguntou:
- Como foi pra você se assumir gay para sua família?
Eu parei por um instante, cortei um pedaço do bolo de chocolate, e percebi que há muito tempo eu não conversava e sequer pensava sobre este evento, sobre este catastrófico evento na minha história, mas respondi:
- Foi uma catástrofe.
- Você se arrependeu?
- Nem por um segundo...Sabe Sara? Nada paga o preço de ser você mesmo. Nós só temos uma vida, se não fizermos dela o que devemos fazer, ninguém fará por nós. Somos os únicos responsáveis por nossa história. Podemos seguir nosso coração, nossos olhos, nossos ouvidos, ou seguir o que os outros esperam... cada um decide o que é melhor para si mesmo. Ou o que acredita ser o melhor.
- Mas o que foi mais doloroso depois que você se assumiu?
- Olha eu era Testemunha de Jeová; e dentro das doutrinas dessa religião, pessoas do mesmo sexo não podem ter um relacionamento sexual, nem tampouco afetivo. Além dessa crença, era regulamentado também de que se uma pessoa fizesse algo ao contrario do que a doutrina permite, essa pessoa teria que ser apartada do convívio com as demais. Os outros da mesma crença não podiam dar, sequer bom dia à essa pessoa.
- Nossa! Que absurdo!
- Pois bem, eu era testemunha de jeová, tinha 17 anos. E tinha centenas de amigos testemunhas que me ligavam todos os dias, que me visitava com frequência, e passeávamos muito. A maioria se conhecia desde a infância. Porém eu já tinha consciência da minha sexualidade e assim como também já havia tentado gostar de garotas, já havia orado muito para que eu pudesse reverter essa minha condição que eu considerava amaldiçoada contudo nunca tive sucesso. Por muitas vezes eu via meus amigos arrumando uma namorada, apaixonados e planejando um casamento e enquanto isso eu chorava com uma certa inveja por eles serem "normais" e eu não. Algumas vezes me senti tão triste que pensava que eu não deveria ter nascido. Eu me achava uma aberração, um erro, uma vergonha. Pensei e tentei suicídio algumas vezes.
- Sério? - Assustada ela me interrompeu.
- Sério, mas um dia eu me olhei no espelho e disse que daria uma última oportunidade à vida. Eu juntei minha família na sala e disse que eu era gay e que não queria ser mais testemunha de Jeová. E disparei a chorar um choro que vinha da minha alma, um choro que ultrapassava meu corpo, eu chorava como se fosse para conter uma loucura que estava prestes a nascer. Eles não esperavam aquela atitude da minha parte, e nem tampouco eu. Não faço ideia de onde tirei tanta coragem. Mas foi o que eu fiz!
- E como é que eles reagiram?
- Meu pai levantou e me abraçou dizendo que independente de qualquer coisa iria me amar pra sempre. Já minha mãe, ela me perguntou se eu me lembrava do que a bíblia diz sobre este comportamento. Eu respondi que lembrava perfeitamente, mas que durante o tempo que eu levei a bíblia em consideração eu não estava sendo feliz. E então Sara, ela me disse que eu devia tentar mais. Mas eu fui resoluto em dizer que não queria tentar mais nada que não fosse me aceitar como eu sou.
- E desse dia em diante? Como é que foi pra você dentro de casa?
- Dentro de casa foi complicadíssimo, tinha dias que parecia que estávamos todos tão tristes que parecíamos mortos tremendo à procura de alguma alegria. Foi muito difícil ver minha mãe chorando por conta daquela situação, foi difícil voltar a sentir-me parte da família depois daquele momento. Isso é comum para a maioria das pessoas gays, mas houve algo de diferente pra mim. Pelo fato de eu ter deixado de ser testemunha de jeová iria suceder que minhas relações com as outras testemunhas de jeová iriam cessar a partir do momento em que eu me dissociasse da rela. E para tanto eu teria que estar preparado. E eu pensava que estava preparado, até o dia que eu estava caminhando rumo à padaria o meu melhor amigo passou por mim, e a partir daquele momento éramos estranhos, eu me senti como se estivesse morto, invisível, e que eu fosse completamente dispensável na vida dele! E esse sentimento foi muito forte, tão forte que eu passei a desacreditar em muitos sentimentos como amor, amizade, fé e carinho. Porém passei tudo isso com apenas dois objetivos, um era ser feliz e o outro era amar. Eu precisava me sentir feliz sendo quem eu realmente sou, sem mascaras, sem o interesse de agradar ninguém, eu queria ser feliz de forma limpa. Assim como também queria acreditar no amor, queria viver um grande amor; e eu vivi.
- Puxa vida! Eu não conhecia essa parte! Estou em choque! Essa história é muito mais complicada do que a da maioria! -  Disse Sara, depois de algum tempo em silêncio.
- Mas acredite, tem situações piores! Infelizmente! - Conclui, enquanto levava os talheres para a pia.
O trinco da porta começou a tinir, era Alma adentrando. Me abraçou, me perguntou como eu estava, e como estava o trabalho. Eu respondi e percebi um semblante bem abatido. Um semblante insuficiente para a alma de Alma. Só nesse momento é que eu percebi o quanto ela estava abatida com aquela novidade na vida delas. Fiquei impacientemente preocupado, principalmente com o fato de que Alma sempre foi tão receptiva com as questões gays, sempre foi tão liberal neste sentido. Qual seria o verdadeiro problema? Estaria ela fingindo amor incondicional durante todo aquele tempo, ou haveria outras preocupações por trás? Mal pude esperar a hora de sentarmos e conversar. Seus olhos já me adiantavam a sua tristeza. Sara ofereceu uma fatia do bolo à ela, e ela recusou dizendo que iria comer mais tarde. Fiquei sentado no sofá ouvindo uma coletânea de Nina Simone ao lado de Sarinha, enquanto Alma tomava banho.
 Introspectivos, flutuávamos naquela voz firme que porém fraquejava, quando se deparava com alguma surpresa no seu coração. Havia densidade naquela voz, tinha uma história que ultrapassava a letra da música, tinha tristeza e de vez enquanto ela se engasgava com esperança.
Cerca de meia hora se passaram até que Alma saiu do quarto. Me chamou para dar uma volta no parque, e Sara levantou-se e for lavar os talheres. Saímos rua à fora, e durante boa parte nossos silêncios se comunicaram. Sentamos num banco da praça, Ela cruzou as pernas, entrelaçou os seus antebraços sob o cólo. Percebi que algumas marcas de expressões foram riscadas com muita elegância no seu rosto, seus cabelos eram tão lindos àquela altura. Alma continuava sendo minha referencia de beleza. Ela estava de olhos fechados quando eu interrompi o silencio, dizendo:
- Sara é gay.
Alma, abriu os olhos, e fitou os meus olhos muito séria. Questionei àquele semblante, qual o maior problema naquela situação; e ela então me respondeu com muita amargura. Com uma amargura incalculável. Sua oração soprou amarga como a nascente da voz de Nina Simone. Amarga. Eu não consegui tragar a força daquele sentimento que comprometeu nossa amizade. Comprometeu plenamente nossa história. Comprometeu o futuro de nossas vidas. O sentimento que ficou evidente naquele momento, foi mais forte que a frase que lhe acompanhava. Foi forte o suficiente, para que eu me levantasse sem mais interrogações. Foi um soco, foi um atropelo, foi como se caísse do alto de um prédio uma pedra de concreto seco, sobre minha cabeça. Foi forte. Foi forte o suficiente para que eu voltasse ao apartamento, só para abraçar Sara, pegar minhas coisas e o primeiro avião para bem distante daquela amargura. O que Alma me disse, foi mais forte que o silencio dos meus ex-amigos testemunhas de jeová, foi mais forte que passar pelo meu melhor amigo e sentir-me morto.
 Sara, era minha maior referencia no mundo. Depois que saí de casa, saberia que poderia contar muito pouco com minha família. Eu sabia que se eu passasse apertos financeiros, meus pais pensariam que eu deveria parar de gastar com 'viadagem' e economizar. Mas Sara não, me ajudaria sem nenhum problema. Eu sabia que se eu fosse traído, teria os braços dela para chorar e os olhos dela para chorarem comigo; enquanto meus pais diriam que os gays são assim mesmo. Eu sabia que se eu pegasse uma doença sexualmente transmissível, Sara é que me acompanharia até o último dia de luta. Todavia, aquela pessoa que sentou comigo naquele banco, era muito diferente. Era o contraste de tudo o que eu conheci. Mas era verdade. O pior é que era verdade. Eu vi nos seu corpo que era verdade. Mas onde se escondeu aquela verdade, durante tantos anos? Por que apareceu naquele momento?
 E no beirar daquela madrugada, eu já aterrizava na minha cidade e uma dor similar à dor que acolhi quando me assumi gay à minha família aterrizou comigo. A solidão. Alma me deixou e a solidão ficou comigo. Eu deixei Alma e ela também ficou só. Alma deixou Sara sozinha. Eu não deixei Sara. Mas foi difícil ajuda-la à beira da solidão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário