terça-feira, 22 de outubro de 2013

À beira do pior

 Se eu pudesse ser a pessoa mais feliz do mundo. Eu teria que ser cantor. Mas não simplismente um bom cantor. E sim um cantor interprete. Sem dúvida os que assumem este oficio, são as pessoas mais realizadas do mundo. Por que eles vivem de dizer o que sentem. Se ficam tristes, essa tristeza vira uma obra de arte, se estão no fundo do poço fazem coisas com tamanha exatidão, que da gosto ter vindo ao mundo.  Eu tenho meus interpretes de preferência, João Gilberto é um dos que eu mais gosto. Mas nenhum interprete, nenhum. Nenhum que eu conheço expressou a tristeza e o desespero que estou sentindo. Não encontro em nada à minha volta, uma segurança de que as coisas ficaram bem. Eu estou sem lágrimas e sem para onde ir.
 A amizade, que eu sempre estimei é a fonte da minha maior tristeza hoje. Eu não me lembro de ter feito alguém triste como estou agora. Ou talvez eu tenha. Talvez seja isto o que minha mãe sentiu, quando eu abandonei suas crenças. Talvez tenha sido isso. Mas eu não tinha escolha. Em verdade eu tinha escolha, mas naquele momento eu fiz a melhore escolha pra mim. A melhor escolha pra mim, foi feita. Mas e pra ela? Foi a melhor escolha? Eu não posso responder; responder seria desastroso. Mas nesta madrugada, recheada de café e de um piano amargurado vem chegando o sol. Minha querida alma, como será que esta?
 Três dias depois, ainda de manhã quando eu entrei no carro recebi um telefonema. Era Sara. Mas eu não podia atende-la. Estava bagunçado por dentro, tinha um medo incontrolável. Tinha o maior pesadelo morando dentro de mim, o pesadelo de não acordar daquele pesadelo. Tinha o medo de saber que Alma seria irredutível no seu posicionamento. Tinha medo que aquela Alma se perpetuasse. Durante o todo o percurso, o meu peito se contorcia de dores, um incomodo. Eu estava impaciente com a vida. Por que a vida em determinadas horas, se torna dispensável. Certas vezes a dor é tão grande que a morte seria um orgasmo.
 Só, dois meses depois, tive coragem de abrir um e-mail que Sara me enviou. O e-mail dizia:
Meu querido, meu amigo, meu pai;

Estou precisando muito mais de você do que de qualquer coisa; as coisas comigo e minha mãe estão a cada segundo pior. Minha relação com ela esta completamente comprometida, não há sequer um bom dia que seja bem compreendido por ela. Não há alegria por aqui, não há esperança, só há algumas recordações que eu posso guardar comigo. Eu não sei exatamente o que foi que aconteceu com vocês no dia que você esteve aqui, só sei que estou perdida. Estou confusa e completamente desesperada. Por favor, me ajude! Eu te imploro ajuda! Eu preciso de um norte, de uma vida. Eu preciso acreditar que isso tudo uma hora irá desaparecer de nossas vidas. E voltaremos a ser grandes nessa vida.  Não canso de sonhar, um dia voltar a passear e a viver com vocês. Sonho que sentaremos um dia nesse sofá de novo para ouvir uma música bonita. Por favor, perdoe minha mãe, ela precisa de você. Eu preciso de você, preciso dela. Preciso de "nós" de novo.

Sarinha, 

Li e re-li. Li por mais três vezes, li outro dia, e por fim cheguei a perceber que Alma continuava com o mesma atitude. Mas o que havia de ter acontecido? Essa era a única pergunta que eu me fazia. Eu só precisava dessa resposta. O que foi que levou Alma a se tornar assim? O que foi que levou ela a se tornar essa pessoa. Liguei para Sara, quando ela atendeu parece que estava com outras pessoas, e ainda deu para escutar ela pedindo licença. Me perguntou como eu estava e eu respondi, que há muito tempo não me encontrava tão mal. Ela me pediu desculpas e com a voz embargada ela me confessou que tinha consciência de que tudo aquilo foi ela que desencadeou. Interrompi sua afirmação, negando. Eu afirmei para ela que não há culpados naquilo tudo, só há um conjunto de incompreensões. E que com certeza tudo iria ficar bem. Ela pediu que eu não me desligasse mais dela, ela me disse que precisava de mim, que sentia minha falta. E nisto meu coração se atormentou.
  Sara, me disse que a única coisa que lhe fazia feliz era estar com Suzana, fazia ela sentir-se mais leve, mais calma, ela me disse que  Suzana faz ela sentir-se como se fosse ouro, uma jóia preciosa, um milhão de dólares. E encerrou dizendo que o mundo é melhor com ela, mas seria muito melhor se fosse com ela, comigo e com Alma. Eu adoraria, tudo o que eu mais queria da vida é que Alma pudesse aproveitar melhor aquele momento mágico na vida de sua garotinhas; será que ela iria viver aproveitar isso um dia? Adianto a resposta: não.
 Eu tenho várias pessoas legais fazendo parte da minha rotina, tenho amigos que me acompanham em shows, cinemas, festivais e tudo mais. Tenho amigos de mesa de boteco, amigos de teatro, amigos de praia, de acampar e tudo o mais. Mas esses amigos, são do tipo que uma hora ou outra vão morar em outra cidade, ou começam a namorar e de repente sumiu do meu convívio. O que era diferente da minha ligação com Alma, era uma coisa de uma alma para a outra. Mas um determinado dia eu decidi marcar com meus amigos para ir à um boteco, foi onde conheci um garoto lindo. Moreno, sorriso solto, cheio de boas esperanças, cheio de alegria pela vida. A vida inteira num sorriso. E ela sabia de tudo, conhecia tudo. Abraçava muito. Um olhar muito mimoso. O nome dele: Sinthy. Foi Nince, uma colega da faculdade que convidou ele. E daquele dia em diante nos tornamos grandes amigos, e por algumas vezes dormimos juntos. E uma promessa de amor, começou a surgir no meu coração.
 Liguei para Sara, e conversamos sobre nossos relacionamentos. Ela muito jovem, muito linda, estava completamente inspirada naquele romance lindo. Eu já nos meus trinta e seis anos; sentia-me como um adolescente. Era uma luz, naquele momento tão tenso. Por alguns instantes, enquanto eu conversava com Sara, eu sentia a mesma sintonia que eu tinha com Alma. Sendo que a única coisa que eu soube de Alma naquela ligação, foi que ela chegava do trabalho e ia direto para o quarto e que nos finais de semana. Ficava todo o tempo no computador. Lamentamos e fizemos votos de que essa situação mudasse. Terminando esta ligação, liguei para Sinthy, e combinamos de ir ao teatro no fim de semana. Comecei a guardar muitas expectativas., comprei roupas novas, comprei um cd de Paul Simon para presenteá-lo. Arrumei minha casa. Perfumei os corredores, coloquei La vie en rose para tocar, dançava enquanto a música tocava. Subi no sofá para alcançar o teto. Pulei do sofá e fiz outras bobagens que eu não fazia há muito tempo. Alma ainda era uma dor, mas naquele momento havia Alma em minha alma. E por um momento pensei comigo mesmo: Que mundo maravilhoso!
 Chegando perto da hora da peça, comecei a passar minha calça, meu sapatos, já na expectativa de Sinthy bater à minha porta dentro das próximas horas.  Engomei as mangas da camisa, tomei banho ouvindo Madonna, lavei os cabelos, fiz a barba. Saí do banheiro, vesti minha calça, coloquei meias branquinhas, amarrei os cadaços, abotoei cada botão da camisa enquanto cantava Like a prayer. Por fim coloquei o cinto e Louis Armstrong para tocar, olhava na janela de minuto a minuto, e o coloquei um café pra coar. Me olhava no espelho e olhava da janela. Espelho. Janela. Espelho. Janela. Espelho. Janela. Decidi ligar para ele, pois já havia passado alguns minutos do horário combinado. Mas não fui atendido. Fiquei com uma interrogação no ar; mas pensei: ele deve estar dirigindo. E enquanto isso peguei o encarte do novo cd de Gal Costa. Peguei uma revista sobre Jazz e comecei a ler. Terminei de ler um artigo inteiro. Liguei novamente. Sem sucesso.
 Começou a se aproximar de mim, uma nova tristeza. Uma pequena decepção. Depois outras decepções. Juntaram-se várias tristezas e os botões da camisa começaram a se desabotoarem. Cinto foi afrouxado. Os cadarços desamarrados. Coloquei café numa xícara, olhei ao redor e eu estava: sozinho. Sozinho. Algumas interrogações acompanhavam os goles de café. E se eu não fosse gay? Como estaria minha vida àquela altura se eu não fosse gay? Estaria com algumas crianças correndo pela sala? Estaria num casamento feliz? Meus pais iriam almoçar a comida da minha esposa, e iriam meus filhos serem afagados pela minha mãe. Iriamos todos para igreja. Por que nasci gay? O que a vida queria me dizer com isso? Por que tanta tristeza? Alma? O que houve com Alma? Como ela estaria naquela hora? Estaria pensando em mim, no nosso passado, na nossa história? Teria consciência ela de que nunca, nem por um segundo desejei o mal à ela? Eu precisava muito de Alma, e nos momento  à frente eu iria precisar muito mais.
Lembro pouco, mas me lembro que toda vez que eu dava muita risada, minha mãe dizia que criança quando esta rindo demais vai dormir chorando. E pelo que percebo, isto não se aplica apenas à infância, a vida inteira é assim que acontece. Passaram-se duas horas que eu estava deitado no tapete da sala, me contorcendo com todas aquelas tristezas. Até que eu recebi uma ligação, era Nince. Ao que atendi:
- Olá, Nince! Tudo bem? - Escutei uma voz completamente embargada, rouca e totalmente diferente do vozeirão que Nince tinha. Levantei do tapete e perguntei.
- O que foi que aconteceu Nince? Esta tudo bem? - Perguntei franzindo a testa e já preocupado.
- Você não soube o que aconteceu? - Respondi que não, foi quando ela me deu a noticia de que Sinthy havia sido assassinado. Eu me desarmei completamente, saí caminhando desnorteado pelos corredores e descendo as escadas do meu prédio e sentei na calçada. Esta é uma das cenas mais vivas na minha memória. Eu sentado numa calçada fria às 23:00 beirando a madrugada, até que o carro de Nince parou na porta do meu condomínio e ela desceu do carro e sentou-se na calçada junto comigo. Choramos muito. Nince era uma boa pessoa, uma excelente professora, era casada com um jornalista muito bem sucedido. E Sinthy foi seu aluno, depois que ele se formou eles se tornaram grandes amigos. E ali estávamos chorando por um rapaz tão parrudo em sua delicadeza, tão quieto em sua elegância, ele ficou vivo em tudo o que nós gostamos.
 No dia seguinte fomos para o velório, protestos contra a homofobia foram articulados nacionalmente. A mãe de Sinthy veio abraçar Nince, e Nince me apresentou à sua mãe, em meio às lágrimas ela me disse:
- Ele estava perdidamente apaixonado por você.

Fiquei mais abalado ainda, poderíamos ter um grande futuro pela frente, poderia ter sido ele o grande amor da minha vida. Poderíamos ter criado um filho. Poderíamos ter ido ao show de Paul Simon na europa. Poderia apresenta-lo à Alma e Sara um dia. Ele poderia ser meu novo grande amigo. Mas ele estava num caixão, estava frio, estava com feridas pelo rosto, teve seus genitais cruelmente amputados. E o seu futuro ficou apenas com uma grande possibilidade.  Mas um grito de socorro ecoou por todo o Brasil. Um grito de aflição, um grito mais alto que o conforto dos que estavam acomodados. Ainda no velório, me afastei até um café próximo chamado "Café com bolacha" eles tocavam bolachões, quer dizer Lp's. E o bolachão que tocava era o The Stonewall Celebration Concert de Renato Russo; e eu me lembrei da primeira vez que eu ouvi esse álbum, eu havia ido visitar Alma e ela me deu esse álbum em formato de CD, fizemos café e nos sentamos para escuta-lo. Foi logo após a morte de Renato Russo e ao terminar o CD, conversamos sobre o quanto é importante dizer: eu te amo. O modo como a vida é curta.
- A vida é tão curta, tão curta; que não da tempo de ter raiva de quem a gente ama; não da tempo de ter ciúmes; não da tempo de brigar. De ficar sem se falar. Não temos tempo pra isso. - Disse Alma.
Lembrar disto foi o suficiente para que eu sair imediatamente da cidade num avião sem levar sequer outro casaco.

À beira da solidão

Quando você for conversar algum amigo, não prepare uma discurso! Mas prepare duas ou três perguntas sobre ele. Prepare-se para saber como ele anda e não para falar como você esta. Amigos se fazem pelo interesse mútuo e não pelo interesse próprio, (isto é velho). Se você for interessado em saber como esta o seu amigo, ele irá retribuir confortavelmente. Ainda que você esteja extremamente feliz ou triste, se importe só com ele. Aprendi isso com Alma. Foi assim que ela sempre agiu comigo, no dia que os pais dela morreram num terrível acidente automobilístico, quando finalmente tive coragem de entrar no velório ela me abraçou desnutrida de esperanças e me perguntou se eu já havia encontrado o disco de Cazuza. Eu não sabia o que falar naquele momento tão inesperado, triste, frio e aterrorizante.
 Quanto à irreparável perda que Alma sofreu no fim da adolescência com o decorrer dos anos ela foi aprendendo a respirar melhor essa situação. Porém, antes houve o período em que ela trancou-se em um mundo de puras lágrimas e muitas lágrimas. Gentilmente agradecia as minhas visitas mas era nítido o seu desejo de ficar sozinha. Era saudável pra ela ficar no seu silencio, em comunicação consigo.  Ela fez uma imensa falta, principalmente por que foi no mesmo momento em que eu me apaixonei pela primeira vez e tive minha primeira decepção amorosa. Depois que retomamos os nossos diálogos, nossos encontros, Alma já era uma mulher, era outra pessoa, era séria. Mais séria, mais adulta, mais calada, porém ainda era a Alma de sempre.
 Foram poucos meses até ela conhecer o pai da Sarinha e engravidar. Depois o seu namorado partiu para a Europa, sem sequer deixar um telefone para contato. Mas Alma foi uma excelente mãe, foi zelosa e alegre na criação de Sarinha, eu que acompanhei elas durante tantos anos sempre percebi com clareza a relação limpa, pura e doce entre as duas morenas que cintilam minha vida de carinho.
 Assim que aterrissei, liguei o celular e era uma mensagem de Sarinha, expressando sua felicidade por conta da minha chegada. Menos de trinta minutos eu cruzei a cidade sob o elegante por do sol e cheguei ao apartamento. Sara estava cozinhando um bolo de chocolate e escutando Nina Simone. Enquanto Alma tinha ido ao supermercado. O bolo já estava quase pronto e ela me ajudou a levar as coisas para o quarto onde eu iria ficar. Depois nos sentamos e começamos a conversar sobre a música que tocava, ela já tinha toda coleção de Nina e fiquei impressionado com o fato de que, Alma havia sido fã de Nina quando éramos jovens, pra ser mais especifico nas beiradas de engravidar de Sara. Finalmente entramos no assunto crucial. Ela me perguntou:
- Como foi pra você se assumir gay para sua família?
Eu parei por um instante, cortei um pedaço do bolo de chocolate, e percebi que há muito tempo eu não conversava e sequer pensava sobre este evento, sobre este catastrófico evento na minha história, mas respondi:
- Foi uma catástrofe.
- Você se arrependeu?
- Nem por um segundo...Sabe Sara? Nada paga o preço de ser você mesmo. Nós só temos uma vida, se não fizermos dela o que devemos fazer, ninguém fará por nós. Somos os únicos responsáveis por nossa história. Podemos seguir nosso coração, nossos olhos, nossos ouvidos, ou seguir o que os outros esperam... cada um decide o que é melhor para si mesmo. Ou o que acredita ser o melhor.
- Mas o que foi mais doloroso depois que você se assumiu?
- Olha eu era Testemunha de Jeová; e dentro das doutrinas dessa religião, pessoas do mesmo sexo não podem ter um relacionamento sexual, nem tampouco afetivo. Além dessa crença, era regulamentado também de que se uma pessoa fizesse algo ao contrario do que a doutrina permite, essa pessoa teria que ser apartada do convívio com as demais. Os outros da mesma crença não podiam dar, sequer bom dia à essa pessoa.
- Nossa! Que absurdo!
- Pois bem, eu era testemunha de jeová, tinha 17 anos. E tinha centenas de amigos testemunhas que me ligavam todos os dias, que me visitava com frequência, e passeávamos muito. A maioria se conhecia desde a infância. Porém eu já tinha consciência da minha sexualidade e assim como também já havia tentado gostar de garotas, já havia orado muito para que eu pudesse reverter essa minha condição que eu considerava amaldiçoada contudo nunca tive sucesso. Por muitas vezes eu via meus amigos arrumando uma namorada, apaixonados e planejando um casamento e enquanto isso eu chorava com uma certa inveja por eles serem "normais" e eu não. Algumas vezes me senti tão triste que pensava que eu não deveria ter nascido. Eu me achava uma aberração, um erro, uma vergonha. Pensei e tentei suicídio algumas vezes.
- Sério? - Assustada ela me interrompeu.
- Sério, mas um dia eu me olhei no espelho e disse que daria uma última oportunidade à vida. Eu juntei minha família na sala e disse que eu era gay e que não queria ser mais testemunha de Jeová. E disparei a chorar um choro que vinha da minha alma, um choro que ultrapassava meu corpo, eu chorava como se fosse para conter uma loucura que estava prestes a nascer. Eles não esperavam aquela atitude da minha parte, e nem tampouco eu. Não faço ideia de onde tirei tanta coragem. Mas foi o que eu fiz!
- E como é que eles reagiram?
- Meu pai levantou e me abraçou dizendo que independente de qualquer coisa iria me amar pra sempre. Já minha mãe, ela me perguntou se eu me lembrava do que a bíblia diz sobre este comportamento. Eu respondi que lembrava perfeitamente, mas que durante o tempo que eu levei a bíblia em consideração eu não estava sendo feliz. E então Sara, ela me disse que eu devia tentar mais. Mas eu fui resoluto em dizer que não queria tentar mais nada que não fosse me aceitar como eu sou.
- E desse dia em diante? Como é que foi pra você dentro de casa?
- Dentro de casa foi complicadíssimo, tinha dias que parecia que estávamos todos tão tristes que parecíamos mortos tremendo à procura de alguma alegria. Foi muito difícil ver minha mãe chorando por conta daquela situação, foi difícil voltar a sentir-me parte da família depois daquele momento. Isso é comum para a maioria das pessoas gays, mas houve algo de diferente pra mim. Pelo fato de eu ter deixado de ser testemunha de jeová iria suceder que minhas relações com as outras testemunhas de jeová iriam cessar a partir do momento em que eu me dissociasse da rela. E para tanto eu teria que estar preparado. E eu pensava que estava preparado, até o dia que eu estava caminhando rumo à padaria o meu melhor amigo passou por mim, e a partir daquele momento éramos estranhos, eu me senti como se estivesse morto, invisível, e que eu fosse completamente dispensável na vida dele! E esse sentimento foi muito forte, tão forte que eu passei a desacreditar em muitos sentimentos como amor, amizade, fé e carinho. Porém passei tudo isso com apenas dois objetivos, um era ser feliz e o outro era amar. Eu precisava me sentir feliz sendo quem eu realmente sou, sem mascaras, sem o interesse de agradar ninguém, eu queria ser feliz de forma limpa. Assim como também queria acreditar no amor, queria viver um grande amor; e eu vivi.
- Puxa vida! Eu não conhecia essa parte! Estou em choque! Essa história é muito mais complicada do que a da maioria! -  Disse Sara, depois de algum tempo em silêncio.
- Mas acredite, tem situações piores! Infelizmente! - Conclui, enquanto levava os talheres para a pia.
O trinco da porta começou a tinir, era Alma adentrando. Me abraçou, me perguntou como eu estava, e como estava o trabalho. Eu respondi e percebi um semblante bem abatido. Um semblante insuficiente para a alma de Alma. Só nesse momento é que eu percebi o quanto ela estava abatida com aquela novidade na vida delas. Fiquei impacientemente preocupado, principalmente com o fato de que Alma sempre foi tão receptiva com as questões gays, sempre foi tão liberal neste sentido. Qual seria o verdadeiro problema? Estaria ela fingindo amor incondicional durante todo aquele tempo, ou haveria outras preocupações por trás? Mal pude esperar a hora de sentarmos e conversar. Seus olhos já me adiantavam a sua tristeza. Sara ofereceu uma fatia do bolo à ela, e ela recusou dizendo que iria comer mais tarde. Fiquei sentado no sofá ouvindo uma coletânea de Nina Simone ao lado de Sarinha, enquanto Alma tomava banho.
 Introspectivos, flutuávamos naquela voz firme que porém fraquejava, quando se deparava com alguma surpresa no seu coração. Havia densidade naquela voz, tinha uma história que ultrapassava a letra da música, tinha tristeza e de vez enquanto ela se engasgava com esperança.
Cerca de meia hora se passaram até que Alma saiu do quarto. Me chamou para dar uma volta no parque, e Sara levantou-se e for lavar os talheres. Saímos rua à fora, e durante boa parte nossos silêncios se comunicaram. Sentamos num banco da praça, Ela cruzou as pernas, entrelaçou os seus antebraços sob o cólo. Percebi que algumas marcas de expressões foram riscadas com muita elegância no seu rosto, seus cabelos eram tão lindos àquela altura. Alma continuava sendo minha referencia de beleza. Ela estava de olhos fechados quando eu interrompi o silencio, dizendo:
- Sara é gay.
Alma, abriu os olhos, e fitou os meus olhos muito séria. Questionei àquele semblante, qual o maior problema naquela situação; e ela então me respondeu com muita amargura. Com uma amargura incalculável. Sua oração soprou amarga como a nascente da voz de Nina Simone. Amarga. Eu não consegui tragar a força daquele sentimento que comprometeu nossa amizade. Comprometeu plenamente nossa história. Comprometeu o futuro de nossas vidas. O sentimento que ficou evidente naquele momento, foi mais forte que a frase que lhe acompanhava. Foi forte o suficiente, para que eu me levantasse sem mais interrogações. Foi um soco, foi um atropelo, foi como se caísse do alto de um prédio uma pedra de concreto seco, sobre minha cabeça. Foi forte. Foi forte o suficiente para que eu voltasse ao apartamento, só para abraçar Sara, pegar minhas coisas e o primeiro avião para bem distante daquela amargura. O que Alma me disse, foi mais forte que o silencio dos meus ex-amigos testemunhas de jeová, foi mais forte que passar pelo meu melhor amigo e sentir-me morto.
 Sara, era minha maior referencia no mundo. Depois que saí de casa, saberia que poderia contar muito pouco com minha família. Eu sabia que se eu passasse apertos financeiros, meus pais pensariam que eu deveria parar de gastar com 'viadagem' e economizar. Mas Sara não, me ajudaria sem nenhum problema. Eu sabia que se eu fosse traído, teria os braços dela para chorar e os olhos dela para chorarem comigo; enquanto meus pais diriam que os gays são assim mesmo. Eu sabia que se eu pegasse uma doença sexualmente transmissível, Sara é que me acompanharia até o último dia de luta. Todavia, aquela pessoa que sentou comigo naquele banco, era muito diferente. Era o contraste de tudo o que eu conheci. Mas era verdade. O pior é que era verdade. Eu vi nos seu corpo que era verdade. Mas onde se escondeu aquela verdade, durante tantos anos? Por que apareceu naquele momento?
 E no beirar daquela madrugada, eu já aterrizava na minha cidade e uma dor similar à dor que acolhi quando me assumi gay à minha família aterrizou comigo. A solidão. Alma me deixou e a solidão ficou comigo. Eu deixei Alma e ela também ficou só. Alma deixou Sara sozinha. Eu não deixei Sara. Mas foi difícil ajuda-la à beira da solidão.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

À beira da razão

Algum estudo deve apontar que a idade onde mais nos prestamos a ouvir a razão é a idade adulta, e esse estudo deve estar certo. Jovens de um modo geral costumam atentar acentuadamente para as emoções, enquanto um adulto geralmente esta atento a relação de valores entre duas grandezas. Tanto Alma quanto eu, ainda não compreendemos muito bem o que é ver a razão. Ou ouvir a razão. Pessoas como nós dois vivem com imensa dificuldade de compreender a vida adulta. Ainda gostamos loucamente de coisas que deveriam ter ficado nos anos noventa. Não trocamos nada por um jogo de pega-varetas, uma molamania ou nossa coleção de tazos. Ainda compramos LP's, ainda somos loucos por Xuxa, ainda brincamos de pegar jacaré na praia. A tecnologia é importante em nossas vidas, mas o abraço é imprescindível.
 Ouvir a razão é vital em alguns momentos. Calcular duas ou três informações e chegar a um denominador comum pode ser uma questão de vida ou morte. A razão pode te encaminhar a uma vida profissionalmente realizada (ou não). Muito vai depender das informações que você pretende reunir e quais decidiu subtrair. A matemática trabalha com a razão a poesia com a emoção. A ciência estuda a razão, o artista a estuda a emoção. O motorista calcula seu caminho através da razão, um romancista calcula o futuro dos seus personagens através da emoção. Por isso esse momento esta sendo um tanto difícil pra mim. Pois não é fácil explicar que para uma mulher tão avante quanto Alma, será difícil de compreender a homossexualidade de sua filha. É difícil contar que Sara esta tendo imensa dificuldade de se abrir para a mãe e contar dos beijos e amassos que aconteceram entre ela e Janete no quarto de Bia.
  Janete não precisou em nenhum momento assumir-se gay para a família. Ela simplesmente foi crescendo e automaticamente evidenciando sua masculinidade até que um dia estavam indo para praia e enquanto o pai estacionava o carro, passou uma morena muito alta, de extrema elegância usando um biquine rosa que levou Janete expontaneamente dizer:

- Que Góx-tooo-saaa!

Um silencio. Um sorriso. E as portas do carro se abriram. Todos desceram e Janete inocentemente continuou acompanhando a morenaça com os olhos.

 Conheci poucas lésbicas.  Dois ou três casais, mas eu me lembro que lá nos meus 14 anos eu era fissurado pela Adriana Calcanhotto, lá naquela época li certa reportagem de que ela havia oficializado uma união estável com Suzana Morais. E ainda nesse mesmo tempo havia do outro lado da rua que eu morava uma moça chamada Nara, que do dia pra noite apareceu usando shorts masculinos e camisas regatas masculinas e o visual que era completamente feminino ainda ganhou um corte de cabelo bem curto tal qual o de Adriana Calcanhotto no inicio dos anos 2000. Eu assumi pra todo mundo minha paixão por Nara! Todos riam muito dessa minha "paixão" embora pra mim fosse verídica. Eram duas grandezas ela e Adriana e no meio tinha meu sentimento em busca de compreende-las. Quanto a assumir minha sexualidade não foi tão diferente do que será para Sara.

 Houve um inverno muito violento e numa tarde dessas de tempestades monstruosas a faculdade onde eu ainda trabalhava não funcionou e em casa recebi uma ligação. Era Alma arrasada! Indaguei sobre o que havia acontecido e ela respondeu que estava aflita, que sentia-se a pior mãe do mundo e chorando disse que nada tinha dado certo pra ela. Não foi dessas ligações em que um grita de um lado e o outro grita também. Não! O silencio é a melhor exclamação. A respiração é o melhor espaço que pode haver entre uma palavra e outra. E para o coração não há resposta melhor que um ouvido que escuta. Quando Alma retomou a voz, foi que começou a me explicar. Disse que Sara entrou no banho e deixou o celular na mesa. Alma jamais iria mexer no celular de sua filha pois compreendia muito bem a necessidade de confiança;  e privacidade àquela altura  da vida. Contudo o celular estava na sua frente e começou a tocar. Era uma mensagem, Alma disse:
- Filha seu celular esta tocan...

No visor do celular apareceu a mensagem, era uma poesia que Janete lhe enviara, dizia:

  Moça, como eu!
  Linda como um folclore
  Mais lábios,
  Seios como uma árvore.
  Mas sábios são seus
  Olhos de mármore!

Alma entrou em pânico, inevitavelmente vasculhou outras mensagens e desaguou numa enchente de mensagens afetivas entre as duas. Antes que pudesse se recompor, Sara abriu a porta do banheiro e o celular estava tão aceso quanto a inquietação de sua mãe. Imediatamente indagou;

- Mãe, a senhora mexeu no meu celular?
- Porque você não me disse antes?

Sara não sabia se deveria confirmar alguma coisa ou simplesmente distrair aquela mensagem, ainda em dúvida disparou a chorar ainda enrolada na toalha.

 - Onde foi que eu errei? - Indagou Alma
As duas ficaram em silencio durante um bom tempo e Alma foi para o quarto, Sara ainda chorou durante mais um tempo até que Alma me ligou, e eu acalmei ela. Mesmo ficando completamente surpreso. Sempre percebi uma personalidade forte em Sarinha, mas ainda assim ela era bem mimadinha, e feminina, e invariavelmente encantadora. Aconselhei Alma a se acalmar e quando estivesse preparada que conversasse melhor com Sara. Ela fez tudo ao contrario, desligou o celular e foi até o quarto de Sara.
- Desde quando você me esconde isso?
- Isso o que mãe?
- Que você é Gay - Disse Alma, com desdém nítido no tom de voz.
- Mãe, não é melhor conversarmos depois?
- Não, eu quero saber dessa putaria agora! (explosão)
- Mãe! O que ta acontecendo? A senhora sempre defendeu a liberdade, sempre foi tão acolhedora com as diferenças...
- Sim, mas as diferenças lá fora! Aqui em casa é outra história!

Deve existir alguma lenda que diga que um santo não costuma fazer milagre para os seus. Alma era sim uma mulher vanguardista, avante e desbravadora. Porém, havia naquele momento uma inquietação projetada na filha. O problema não era a questão da filha ser gay ou não. Mas sim sua frustração como mãe. Seu maior investimento na vida foi indistraidamente Sara. Portanto não estava entre seus planos que surgisse qualquer vestígio de possível erro na pessoa de sua filha. Ainda nessa conversa Alma friamente determinou o fim da amizade entre as duas. E de qualquer relação entre as duas moças. Há uma razão para que aconteça assim? Há alguma razão no mundo para que pessoas boas se comportem com essa atitude? Há algum medo racional?

À beira da paixão

A paixão é a pressa em realizar o coração. É a falta de tempo pra desesperadamente engolir a atenção do outro. É mastigar os saborosos segundos que se passa com o outro. A paixão é o estagiário atrapalhado, é o aprendiz de direção automotiva, é mais dor que amor. Alma, em sua juventude espetacular apaixonava-se com a mesma facilidade que se desencantava; eu achava o máximo pois não dava tempo sequer d'eu gravar o nome de um e ela já estava completamente apaixonada por um novo. Jantava num clima super romântico com Antonio Carlos Junior hoje e amanhã ele era a maior decepção de sua vida, e ainda nesta noite noite me contava enlouquecidamente sobre seu novo afair, começava descrevendo ele fisicamente, em seguida suas virtudes e por fim começava a sonhar com seus futuros entrelaçados. Só depois fui entender que isso é completamente normal. Que isso é saudável, que isto é ser intenso, que isso é no fundo de tudo: amar ou querer amar.
 O amor vem pra poucos. O amor é o fundo do copo, mas a paixão é a beira. A paixão é um mini amor.  A paixão é quente, é louca, é boa. A paixão veio algumas vezes pra mim. Amava as particularidades de cada mini amor que eu vivia. Com um moreno de olhos castanhos eu compartilhava o mesmo gosto musical, com um magrelo esportista assisti todos os filmes da broadway, já com o gordinho aprendi a tocar violão. E assim eu ia colecionando meus beijos, amassos e cartinhas na gaveta. Sara deparava-se com a primeira forma de romance, ela bem que sentia-se angustiada há um certo tempo com suas atrações sexuais. E ainda de frente àquela morena de sorriso largo, cabelos largamente ondulados e coxas grossa ingenuamente torneads, ainda defronte à essa beleza de adolescente não sentia-se completamente segura de sua sexualidade. Ao contrario de Janete, que a esta altura era completamente segura e que cultivava abertamente um comportamento masculino. Os estudos foram interrompidos e começaram a discutir as novas músicas do Criolo, Suzana apaixonou-se de imediato pelo artista que Bia havia apresentado.
 A paixão passa como uma locomotiva nas vias do coração. Vez enquanto é muito saudável. Faz a pessoa sentir-se viva. Mesmo que infalivelmente seja antecedente de uma louca fossa de sentimentos desconfortáveis. A última paixão de Alma foi o que veiculou sua mudança de visual. Hoje ela é uma mãe solteira ruivamente confiante e que finalmente abandonou aquelas blusas de estampas floridas do final dos anos noventa. Seus saltos ganharam alguns centímetros e seu baton esta mais vermelho. Algumas pessoas dizem que ela esta diferente, mas poucos entendem que ela esteve foi apaixonada. No fim, o fim de uma paixão não é tão ruim como rezam.
 Contudo, minha última paixão foi duradoura. Cinco anos de convivência não nos fizeram gays melhores. Peterson Marques não foi o ponto de partida para o despertar de um novo visual, novo andar, novas forças. Ao contrário a paixão que durou tanto tempo foi tristimente confundida com amor. Pior: Verdadeiro amor. Pior: Eterno amor. My Maquedream's como eu chamava-o, foi quem levou meus sonhos de juventude. Foi quem rasgou minhas fantasias de um mundo melhor. Foi um fim para tantas coisas legais que eu tanto desejava. Enquanto namorados subimos juntos a montanha mais alta de nosso estado, fizemos uma trilha de seis dias dentro de uma mata fechada em uma  experiência de extremo contato com a natureza e com aquele sentimento que batizamos de "eu te amo". Mas só depois de cinco anos foi que ficou evidente que tudo aquilo não passava de mais que um grande esforço pra provar que poderíamos ser fiéis, felizes e ainda gays.
 Poucas forças restaram para qualquer coisa depois daqueles cinco anos. Colocar o lixo do lado de fora de casa era difícil. Varrer a casa, limpar os móveis, ligar o carro, fazer a barba, atender o telefone tudo era difícil naquela vida sozinho. Dois meses depois eu ainda tinha muitas dificuldades. Três meses depois ainda tinha muitas dificuldades. Seis meses depois ainda encontrei uma gravata dele em uma caixa de sapatos. Oito meses depois eu encontrei uma carta dentro do bolso de uma jaqueta minha. Um ano depois comprei um novo óculos escuro e fui à praia, conheci Frank e tudo finalmente melhorou durante duas semanas.
  Janete estava realmente encantada com aquela morena, Sara sequer podia acreditar-se gay. Mas não durou muito mais que duas semanas até acontecer um primeiro contato físico. Estavam as quatro amigas no quarto de Bia, após os estudos Bia desta vez deu play num setlist de canções de Maria Gadú, no notebook Suzana acompanhava as noticias sobre a repercussão dos protestos nas principais capitais do país. Resoalutas de que haveria uma luta a ser corajosamente travadas, decidiram se organizarem para apoiar a causa em voga. Combinaram os horários, e a discussão principal foi decidir por qual causa cada uma iria se dedicar mais. Bia achava apropriado montar um cartaz implorando um investimento melhor para com a educação no país. Suzana decidiu que calçaria uma mascara e iria protestar em prol de preços mais acessíveis nos transportes públicos.  Janete foi firme em trazer a questão da diversidade sexual, e decidida protestaria com sentimentos de urgência uma nova presidência na comissão de direitos humanos do país. Sara contou suas últimas experiências nos protestos recentes e disse que dessa vez estaria acompanhando a temática de  Janete.
 O mundo nunca foi muito bom para com os apaixonados. Nos apaixonamos sempre pelo mais difícil. Romeu poderia se encantar com milhares de outras meninas de outras famílias, mas foi apaixonar-se logo por Julieta. Salomão tinha centenas de mulheres à sua disposição, mas Sulamita foi quem o incitou a viver a loucura de uma paixão impossível. Sara em plena juventude poderia apaixonar-se por uma porção de outros garotos, mas foi Janete quem fez a morena de olhos de mármore se prender em sua liberdade.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

À beira de crescer


 Quando brincávamos de encontrar quem se escondeu, correr atrás de quem esta correndo, cozinhar pedras, dirigir o carrinho de plástico e vestir a boneca para o baile; sequer imaginamos que passaríamos a vida toda fazendo a mesma coisa. Afinal alguns romances tem o trágico fim de uma das partes esconder-se enquanto o outro procura desesperadamente o seu futuro despedaçado, e chega o dia em que as dificuldades financeiras são tão indissolúveis quanto pedras. Mas tristeza maior não há do que perder entes-queridos em acidentes de carros que se esmagam como se fossem de plásticos! Agora a vida tem a razão de um teorema. A vida tem momentos tão lindos que se descritos dispensa as expectativas tão bem almejada. 
A infância de Sarinha passou tão rápido quanto uma primavera no Central Park. Em uma ligação, enquanto eu morava em outro estado do sul, Alma me disse que Sara havia começado a andar. Em outra ligação enquanto eu morava no oeste do mesmo estado que Alma, ela me contou que estava morrendo de medo de rancar os dentinhos de Sara e por isso iria extrai-los no dentista. Foi quando ela me autorizou rancar o primeiro dentinho e eu peguei o avião numa tarde muito linda de outono e fui passar o fim de semana com elas, Sara já era minha amiga tanto quanto a mãe. Ontem peguei a gravação do momento em que eu ranqueei um incisivo central, no vídeo que Alma gravou e dirigiu, o único som foi o som do coração de Alma, pois Sarinha desde a tenra idade era extremamente delicada porém quando enchia os peitos de ar, ela agia com uma coragem ensolarada. Alma por sua vez era similar, mas não podia deixar de sensibilizar-se com o primeiro passo de Sara à vida adulta.  No vídeo as mãozinhas de Sara agarravam meu pescoço para absorver ainda mais confiança. Quando vejo essas gravações tão amadoras e tão puras, eu assisto em meu coração o quanto é inédito certas cenas. Terminado o fim de semana voltei com um abraço de Sara, outro de Alma e o dentinho no bolso.
Juro que pouquíssimo tempo depois, enquanto eu morava no norte recebi um SMS de Sara, dizendo:
"Amanhã estarei entrando no ginásio,
Parece que no ginásio é tudo mais difícil...
Saudades! Um grande abraço!"
 Assim que eu pude liguei para Sara e reafirmei a confiança que eu tinha no potencial dela, que já tinha o dente inciso central crescido mas  ainda rancava alguns outros. Em seguida liguei para Alma e ela mais uma vez estava comovida com aquele momento distinto em que Sarinha sentia-se à beira de um conjunto de expectativas e pela primeira vez ela sentia-se seriamente preocupada com seu fofíssimo futuro. No dia seguinte encaminhei pelo correio um caderno de capa dura com a gravura de uma primavera e com a música "O caderno" de Toquinho na contracapa como dedicatória.
Sara tirou de letra o ginásio, mas ainda neste período ela completou doze anos, e se tornou um tanto mais distante. Alma por sua vez teve de volta algumas pequenas liberdades, a liberdade de iniciar um novo romance, depois de alguns anos, contudo este novo romance foi tão forte e rápido quanto o aroma do café quando esta em ebulição. Separaram-se rápido o suficiente para que não chegassem a casar e demorado o suficiente para Alma não perceber que sua filha estava precisando muito dela. Eu ainda morando no norte do país consegui o cargo dos meus sonhos numa faculdade de ciências humanas. Outra liberdade que Alma voltou a desfrutar, foi das pequenas farras noturnas em bares e festas. Não dormia fora de casa mas começou a chegar um pouco tarde e encontrava sua mocinha dormindo.
 Eram dias de mudanças no país, inúmeros jovens saiam pelas ruas de centenas de cidades em busca de melhoras significativas na educação, direitos humanos e transporte público. Eles usavam mascaras e sofreram enxovalho de policiais através de gás lacrimogênio e balas de borracha. A música moderna vangloriava momentos de ocaso, de introspecção. E Havia um novo quadro de jovens atentos ao RAP que por sua vez incitavam um comportamento mais ativo na sociedade. Foi onde mãe e filha se encontraram de novo. Alma como era próprio de sua personalidade foi pioneira em organizar as reuniões e os próprios protestos, ela era uma das principais comunicadoras entre os ativistas e o grupo jurídico que acolheu o movimento. Enquanto este movimento gigante despertava Sara tinha nos olhos um brilho que cintilava de admiração pela alma que despertou em Alma naquele momento. Essa admiração esta evidente nas fotos que ambas publicavam nas redes sociais. Mas ainda acontecia dentro de Sara mudanças inquietantes das quais ela ainda tinha dificuldades de falar em plenos doze anos de idade.
 Sarinha já havia se adaptado bem às novidades do ginásio, já sabia de cor o quadro de horários do ano letivo, fazia anotações chaves dos assuntos discutidos em aula, entregava com pontualidade os trabalhos e organizava bem os grupos de estudos. Um desses grupos era de literatura.  Aos treze anos de Sara, Alma lhe presenteou com uma camisa bem decotada, que caiu muito bem com o corpo moreno e afortunado de prendas que Sara a esta altura já tinha bem definido. A menina já desenvolvida foi para o estudo de grupo com esse vestido. Haviam mais três colegas além da própria neste grupo, eram Bia, Janete e Suzana. O modo como Janete, que já tinha quatorze anos, olhava para Sara era desconcertante demais para uma menina que ainda estava se acostumando com seu novo corpo porém era agradável, fazia o seu coração pisar mais forte em suas batidas. Por que a paixão é o começo de uma revolução dentro de nós. Toda paixão incita revolução e para crescer nada melhor que uma boa revolução; porém em todo o histórico de revoluções sucederam inevitavelmente perdas e sofrimentos irremediáveis. Em todo o histórico de paixões, também.


À beira da vida


 A vida não é bonita! A vida é indispensável, é rasa e nunca deixou de ser surpreendente. Dizer que a vida é bonita é uma declaração simplória para uma coisa tão complexa, tão requintada e cheia de surpresas. Agora para quem sabe viver bem, a vida é muito mais do que um amontoado de dias. Tenho uma amiga que ela não passa um dia sem fazer alguma estripulia diferente. Houve um dia que ela arrumou uma malinha e passou vinte dias num mosteiro sem falar uma palavrinha. Pouco tempo depois ela entrou num curso de violão e em menos de um ano tocou junto com uma orquestra reconhecida. Ainda falando da mesma pessoa ela já conseguiu conhecer todas as cidades do nosso estado pedindo carona durante no período de um um ano. Vamos chama-la de Alma.

Da penúltima vez que nos encontramos ela estava encantada com o sabor do suco de abacaxi com hortelã. Ela tomou cerca de três copos enquanto conversavamos sobre Jazz. Ela que sempre foi apagadíssima à música popular e a música regional estava à flor da pele com a voz de algumas divas do Jazz. Todos os shows que alma assiste ela não se contenta se não estiver na primeira fila. Ela chora com cenas de novelas. Ela vai ao cinema e se assistir uma comédia passa mais de uma semana rindo das piadas, se assistir um drama passa o resto do dia introspectiva refletindo. A alma que tem alma como a Alma dificilmente será uma simples alma no mundo. Escrever sobre almas assim é sempre um prazer. Até que um dia alma engravidou.

Visitei ela recentemente num final de sábado, quando às luzes de uma cidade com o tempo nublado estavam se acendendo enquanto os raios do sol ainda se apagava no horizonte. Entrei em sua sala de estar e lá estava o enxoval todo me aguardando. Ela me apresentou todas as roupinhas e pequenos mimos que vestiriam a vida que estava para chegar. À esta altura Alma tinha pouco mais que duas décadas de vida, e a instável expectativa estava com ela,  principalmente por que faltavam apenas três semanas para Sarinha estrear nas nossas vidas e compartilhar nossos risos e nossas lágrimas, nossas corridas e nossas paradas.

Depois de conhecer as roupinhas de cores claras que acolheria Sara, o quarto doce que Sarinha iria dormir e a poltrona que Alma reservou só para amamenta-la. Sentamos em seu sofá de tom creme listrado com riscados de bege, Alma esticou os joelhos num estofado à parte do sofá e eu acariciei uma almofada sobre minhas coxas. Alma fitava uma janela do apartamento onde se viam crianças jogando bola, eu estava num sofá de frete para alma e por trás de Alma esperavam na prateleira uma coleção imensa de livros e cd's. Alma ficou em silencio durante alguns longos minutos. Somos amigos desde o ginásio e o silencio sempre nos acompanhou, nunca ficar em silencio foi um obstáculo para nossas amizades. Em verdade bons amigos ouvem as pausas, as palmadas e as palavras evitadas. Estávamos ali, cruzando os silêncios e por vezes os nossos olhares conversavam. E através da retina morena de Alma eu enxerguei a janela que dava no seu coração. E nas suas salas estavam os móveis da incerteza de uma mãe solteira à espera de uma criança sem pai presente. Havia em seus quartos um tapete cinza de frustrações profissionais, e em seu banheiro o chuveiro que mistura a água do reservatório com suas lágrimas. Mas na cozinha é que se encontra a beira de boas expectativas, é na cozinha que se prepara o bolo do primeiro Aniversário de Sara, a mamadeira carinhosamente decorada, os docinhos, os mimos, a colherzinha que soa os sons de um avião e aterrissa no sorriso de Sarinha.
 E esta era a beira da vida de Sara e a beira de uma nova vida para Alma. Só muitos anos depois fui ver o quanto elas são parceiras de uma mesma saudade, um mesmo sorriso. Depois que Sara perdeu os dentes de leite e lhe cresceram novos dentes, ela continuou com o sorriso que era próprio das alegrias de Alma. Uma completa a vida da outra, Alma vive outra vez através desta garota que hoje desfila com as virtudes da mãe. Não posso descrever essas vidas como bonitas. São vidas muito mais que bonitas. São vidas com verdade, com liberdade, com o lado bom da saudade. São vidas com alma.

À beira do fundo

 O fundo é realmente o fundo. Contudo a beira do fundo ainda não é fundo. É o mais próximo lugar que há do fundo, mas ainda não é o fundo. Nascer pode ser o fundo de uma gravidez. Crescer pode ser o fundo da infância. Casar pode ser o fundo de um romance. O divorcio pode ser o fundo de um casamento. O fundo de uma saudade pode ser a perda. O desapego pode ser o fundo de uma possessão. A fé pode ser o fundo de uma crença. Mas quando estamos à flor, à margem, à beira desses episódios que  a vida inevitavelmente nos escala como protagonistas; é que nos questionamos profundamente quanto aos sentimentos envolvidos com cada um destes momentos.

Doravante, quando nos encontramos à beira de situações que mudarão todo o curso de nossas vidas nos questionamos sem precauções, nos questionamos sem meias verdades; não nos enganamos, não pincelamos esmalte cintilante em sentimentos outrora evitados.  Uma mulher enquanto gestante vive um dos momentos de maior introspecção de sua vida; por mais inquieta e alvoroçada que seja esta pessoa, quando depara-se com a formação de um outro ser dentro de seu ventre ela automaticamente aprende a arte de sensibilizar-se com aquele momento, os questionamentos são insones e acordam até dentro dos seus sonhos.  A inquietação com o que será do seu futuro e do futuro de sua prole, acompanha os seus nove meses, agora imagine o que acontecem quando poucas semanas precedem o parto... poucos dias... poucas horas...poucos minutos...segundos! 

O fim da infância é outro um momento marcante na vida, a infância é o perfume de nossas histórias. Mas sair dela também precede um choque. Até que um dia (frio ou não) você encontra outra pessoa que te percebe de uma forma singular às demais e outra tensão é se firmar na certeza de que você realmente precisa compartilhar sua vida ou na certeza que o individualismo que você conserva é mais saboroso e indispensável. Conheço tanto quanto você o fundo de algumas verdades, talvez eu conheça um pouco mais pois eu quase sempre sou o mais engraçado dos meus ciclos de amigos, também por ter a graça de um dia ter tropeçado num jarro durante uma séria palestra religiosa. Ou talvez por que eu seja o único que eu conheço que já foi assaltado pelo mesmo bandido três vezes em uma semana. Mas também posso conhecer mais um pouco do fundo de algumas tristezas por que perdi dezenas de amigos e alguns parentes em uma catástrofe que a mídia não divulgou.

  O fundo é sempre o mesmo, mas a beira do fundo pode ser uma experiência inesquecível pra quem esta atento. As expectativas são as correntes que vinculam o presente com todo o futuro. E visto que o fundo já é o fundo, não há mais expectativas. Contudo à beira do fundo é onde existem as mais enlouquecidas ansiedades que marcam pra sempre.