sexta-feira, 4 de outubro de 2013

À beira da vida


 A vida não é bonita! A vida é indispensável, é rasa e nunca deixou de ser surpreendente. Dizer que a vida é bonita é uma declaração simplória para uma coisa tão complexa, tão requintada e cheia de surpresas. Agora para quem sabe viver bem, a vida é muito mais do que um amontoado de dias. Tenho uma amiga que ela não passa um dia sem fazer alguma estripulia diferente. Houve um dia que ela arrumou uma malinha e passou vinte dias num mosteiro sem falar uma palavrinha. Pouco tempo depois ela entrou num curso de violão e em menos de um ano tocou junto com uma orquestra reconhecida. Ainda falando da mesma pessoa ela já conseguiu conhecer todas as cidades do nosso estado pedindo carona durante no período de um um ano. Vamos chama-la de Alma.

Da penúltima vez que nos encontramos ela estava encantada com o sabor do suco de abacaxi com hortelã. Ela tomou cerca de três copos enquanto conversavamos sobre Jazz. Ela que sempre foi apagadíssima à música popular e a música regional estava à flor da pele com a voz de algumas divas do Jazz. Todos os shows que alma assiste ela não se contenta se não estiver na primeira fila. Ela chora com cenas de novelas. Ela vai ao cinema e se assistir uma comédia passa mais de uma semana rindo das piadas, se assistir um drama passa o resto do dia introspectiva refletindo. A alma que tem alma como a Alma dificilmente será uma simples alma no mundo. Escrever sobre almas assim é sempre um prazer. Até que um dia alma engravidou.

Visitei ela recentemente num final de sábado, quando às luzes de uma cidade com o tempo nublado estavam se acendendo enquanto os raios do sol ainda se apagava no horizonte. Entrei em sua sala de estar e lá estava o enxoval todo me aguardando. Ela me apresentou todas as roupinhas e pequenos mimos que vestiriam a vida que estava para chegar. À esta altura Alma tinha pouco mais que duas décadas de vida, e a instável expectativa estava com ela,  principalmente por que faltavam apenas três semanas para Sarinha estrear nas nossas vidas e compartilhar nossos risos e nossas lágrimas, nossas corridas e nossas paradas.

Depois de conhecer as roupinhas de cores claras que acolheria Sara, o quarto doce que Sarinha iria dormir e a poltrona que Alma reservou só para amamenta-la. Sentamos em seu sofá de tom creme listrado com riscados de bege, Alma esticou os joelhos num estofado à parte do sofá e eu acariciei uma almofada sobre minhas coxas. Alma fitava uma janela do apartamento onde se viam crianças jogando bola, eu estava num sofá de frete para alma e por trás de Alma esperavam na prateleira uma coleção imensa de livros e cd's. Alma ficou em silencio durante alguns longos minutos. Somos amigos desde o ginásio e o silencio sempre nos acompanhou, nunca ficar em silencio foi um obstáculo para nossas amizades. Em verdade bons amigos ouvem as pausas, as palmadas e as palavras evitadas. Estávamos ali, cruzando os silêncios e por vezes os nossos olhares conversavam. E através da retina morena de Alma eu enxerguei a janela que dava no seu coração. E nas suas salas estavam os móveis da incerteza de uma mãe solteira à espera de uma criança sem pai presente. Havia em seus quartos um tapete cinza de frustrações profissionais, e em seu banheiro o chuveiro que mistura a água do reservatório com suas lágrimas. Mas na cozinha é que se encontra a beira de boas expectativas, é na cozinha que se prepara o bolo do primeiro Aniversário de Sara, a mamadeira carinhosamente decorada, os docinhos, os mimos, a colherzinha que soa os sons de um avião e aterrissa no sorriso de Sarinha.
 E esta era a beira da vida de Sara e a beira de uma nova vida para Alma. Só muitos anos depois fui ver o quanto elas são parceiras de uma mesma saudade, um mesmo sorriso. Depois que Sara perdeu os dentes de leite e lhe cresceram novos dentes, ela continuou com o sorriso que era próprio das alegrias de Alma. Uma completa a vida da outra, Alma vive outra vez através desta garota que hoje desfila com as virtudes da mãe. Não posso descrever essas vidas como bonitas. São vidas muito mais que bonitas. São vidas com verdade, com liberdade, com o lado bom da saudade. São vidas com alma.

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